Ep. 4: Medo. A rendição de um ex-combatente.

Tentar argumentar com alguém que acabou de dizer que vai te matar não é a melhor coisa a se fazer, mas tentar convencer aquele velho seria mais fácil do que tentar fazer o mesmo com os zumbis.
_ Senhor, não precisa ser dessa forma, podemos conversar. Quem sabe se não podemos ajudá-lo e... Olhe ao nosso redor, senhor, nem nós e nem o senhor temos como ir a lugar algum. Tentei mostrar-lhe a realidade ao nosso redor.
O coroa me deixou terminar a frase e continuou me olhando no fundo dos olhos. Parecia que passava um filme em sua cabeça e apesar da postura e do ar militar, percebi que ele também estava bastante assustado, estava ofegante e um pouco trêmulo. O som emitido pelos zumbis atrás de nós não nos deixava outra escolha a não ser abaixar nossas armas e mostrar que estávamos ali em paz.
_ Meninas ponham suas armas no chão e chutem na direção do senhor... Qual o seu nome, amigo?
_ Almir, ele respondeu abaixando o revolver.
_ Sr. Almir, eu me chamo Alex, essa é Aline, minha namorada e sua vizinha aqui da rua e essa é Natasha, uma amiga nossa. Somos inofensivos.
_ Entrem! Peguem suas armas e entrem. Desculpem o mau jeito, minha velha está lá dentro, cuidando do nosso bisneto, que foi mordido por uma dessas coisas.
Nos entreolhamos, acho que sentimos o mesmo frio na espinha, por já saber o que aconteceria, mas era preciso fazer uma coisa de cada vez, o velho não aceitaria a notícia com um belo sorriso no rosto.
_ Mulher, temos convidados para o lanche da tarde, ele gritou enquanto caminhávamos pelo belo jardim na frente da casa, cheia de janelas.
_ Alex, estão com fome? Com sede? Precisam ir ao banheiro ou tomar um banho? Fiquem à vontade, moças. Minha mulher está no quarto, é a segunda porta à direita, assim que passarem pela copa. Podem ver se ela precisa de ajuda?
Agora parecia que eu conversava com outra pessoa, um outro Sr. Almir. Todo aquele ar intimidador e hostil dera espaço a um homem comum, um velho com um olhar ainda ressabiado, porém mais acolhedor.
_ Sr. Almir... Apenas Almir, por favor, o senhor está no céu. Sente-se, ele me advertiu e apontou uma poltrona na varanda.
_ Ok, Almir, me desculpei e continuei o raciocínio. Estamos seguros aqui? Os zumbis, que é como os chamamos, são idiotas, não transpassam obstáculos, não abrem portas e nem pulam muros. Mas me refiro ao fato de ter dito que seu bisneto foi mordido. Como ele teve contato com...
_ Esses malditos monstros mordedores? Ele me interrompeu.
_ Sim, Almir, como isso aconteceu?
_ Fui buscá-lo na escola e quando parei o carro em frente ao portão, vimos D. Marlene, vizinha aqui da casa ao lado, vindo pelo canto da calçada. Ela aparentemente estava mancando, andava de forma estranha e meu bisneto correu para abraçá-la, como sempre fazia. Ela agarrou o menino e mordeu seu ombro. Só percebi quando meu bisneto já estava gritando e tentando se desvencilhar do ataque. Corri e a empurrei, puxando-o para trás de mim. Ela estava pálida, com os olhos escuros, como poças de sangue coagulado, mas só percebi quando comecei a gritar com ela, que se levantou tentando me atacar também. Não sabia o que estava acontecendo, mas não pensei duas vezes peguei meu bisneto no colo e corri com ele para dentro.
_ Lamento Almir, isso já faz muito tempo?
_ Faz algumas horas, desde a hora do almoço, mais ou menos. Falando nisso, vou ligar o rádio, já está quase na hora, minha velha reza todos os dias ouvindo Ave Maria. Ele disse olhando para o relógio e entrando para a sala.
Foi em vão, estávamos sem eletricidade. Mas mesmo assim, vi quando a senhora cruzou o corredor e entrou no quarto com um rosário entre os dedos. Antes de fechar a porta, ela apenas me olhou e acenou com a cabeça. Voltei a olhar para a rua e fiquei um tempo em silencio observando um zumbi franzino, talvez um adolescente, do outro lado da grade. Ele forçava seu rosto no vão entre barras de metal, a ponto de sua carne abrir, expondo os ossos de seu crânio. Almir também ficou ali observando. Não era preciso uma palavra se quer, mas ele quebrou o silêncio.
_Sabe, filho, eu tenho 84 anos, já servi ao meu país, inclusive em uma guerra que não era minha, fui membro da Força Expedicionária Brasileira, estava na linha de frente da Batalha de Monte Castelo, na Itália. Vi coisas feias, coisas horríveis, daquelas que nenhum homem deveria presenciar.
As lágrimas corriam em seu rosto, enquanto ele falava e alisava os cabelos brancos.
_ Mas nunca, meu filho, nunca pensei que viveria para ver isso e agora penso em tudo o que passei, penso em minha vida desde a infância, cada sacrifício, para agora morrer assim, sem honra, sem vislumbrar a glória, sendo devorado por meus semelhantes.
_ Não será assim, Almir, ficaremos juntos. Eu e as meninas estávamos indo para a Vila da Penha, conhece? Quem sabe não vai conosco, vi que tem um bom carro na garagem e nós pulamos aqui na sua casa porque perdemos o nosso, podia nos levar até lá, o que me diz? Você e sua senhora seriam muito bem vindos na minha casa.
_ Você diz eu e minha senhora, mas eu disse que tenho um bisneto que está ferido, precisando de cuidados e...
_ AAAAAAAAAAAAAAHHHH!!! SOCORROOOOO!!!
Fomos interrompidos por gritos que vinham de dentro da casa. Entramos correndo pela sala, as meninas também vinham na direção contrária, ainda mastigando algo. O som parecia vir de um quarto com a porta fechada. Almir virou a maçaneta, mas ele estava trancado por dentro.
_ MERDA, MERDA, eu falei pra ela não trancar a porra da porta. PORQUE, MEU DEUS, PORQUE? Aline estava visivelmente nervosa.
Pedi licença a Almir e arrombei a porta com o pé, próximo à maçaneta, apesar da força do impacto a porta não se abriu por completo, apenas uma fresta a afastava da parede.
Por ali, pude ver os pés, da dona da casa, já imóveis. Não havia mais o que fazer. Almir passou a frente e abriu a porta com toda a força, empurrando o corpo de sua mulher e deparando-se com seu bisneto, agachado no outro canto do quarto, devorando ferozmente a cabeça de sua avó, já decepada do corpo.

Almir se abaixou e pegou o rosário, de contas de madeira, ainda nas mãos ensangüentadas de sua esposa, sem dar uma palavra. Ele fechou os olhos e beijou o crucifixo, em seguida abriu os braços e caiu de joelhos, como quem aceitasse seu inevitável fim, ele apenas esperava o abraço gélido da morte.

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